Profanando as múltiplas vidas
Organizador de Carne funciona como poderosa metáfora sobre o nosso comportamento cotidiano
Helena Katz
Em uma conferência publicada aqui em 2005, o filósofo italiano Giorgio Agamben ampliou a noção de ''dispositivo'' do pensador francês Michel Foucault. Propôs que qualquer coisa com capacidade de orientar, controlar, determinar, assegurar os gestos, as condutas e os discursos dos seres viventes poderia ser entendida como um dispositivo. Ou seja, dispositivos seriam as escolas, as fábricas, a Justiça, a medicina - como dizia Foucault -, mas também os computadores, os celulares, o iPod e, até mesmo, a própria filosofia. É com esse conceito ampliado de ''dispositivo'' que se pode pensar o Organizador de Carne, que Sheila Ribeiro/Dona Orpheline estreou, em São Paulo, no Rumos Dança, e depois apresentou em curta temporada no Itaú Cultural e no Sesc Pompéia.
Sheila Ribeiro nasceu em São Paulo e radicou-se em Montreal, no Canadá, em 1996. Lá, criou a companhia Dona Orpheline, e é professora do Departamento de Cinesiologia da Universidade de Montreal. No Organizador de Carne, sua mais recente produção, conta com a parceria de Josh S., músico-performer que nasceu em Teresina e trabalha no eixo Brasil/Amsterdã.
A obra surgiu de um episódio acontecido no Deic, em São Paulo. Uma policial, ao vê-la passar por baixo do organizador de fila (era madrugada, não havia ninguém), abordou-a, aos gritos: ''Você é gente ou animal?''
O organizador de fila, daqueles que obedecemos em bancos, em aeroportos, em instituições das mais variadas naturezas, é trabalhado nessa obra na sua função de dispositivo, e funciona como uma metáfora poderosa e competente de todo o nosso comportamento. Porque a ambigüidade entre ordem e disciplina, de um lado, e, do outro, o sentido de pertencer a uma sociedade que funciona sem atrito, não está somente no organizador de fila. Está em todos os outros dispositivos com os quais convivemos e deixamos de reconhecer neles a violência simbólica que promovem. O hábito torna invisível uma série de dispositivos, despotencializando a possibilidade de se identificar o que resulta de sua relação conosco. E isso vale também para o mundo digital, como nos informa a obra, que inclui a Second Life, o MSN e o Orkut.
Em todos esses ambientes, nos quais, ao menos teoricamente, operariam novas formas de convívio, fica evidenciada uma duplicação do comportamento de sempre: também já estamos bem treinados pelos dispositivos que operam no mundo digital, e lá cumprem o mesmo papel que o organizador de filas tem fora dele. Fica claro que a nossa percepção está condicionada pela publicidade, pela mídia, pelo consumo, dentre outros dispositivos. Daí a importância do jogo proposto pelo Organizador de Carne, que é o de perguntar se nós ainda somos capazes de perceber o que nos organiza. Se ainda identificamos as vidas duplas, triplas, quádruplas, múltiplas que fazem parte do nosso estar no mundo.
Se o sujeito é o que resulta da relação entre os seres vivos e os dispositivos, como diz Agamben, a necessidade de identificar os dispositivos transforma-se um uma ação política, e dela o Organizador de Carnes se desincumbe muito bem. Nos faz ver, com as situações variadas que apresenta, que o poder não se preocupa em esconder seus atos de exceção porque nos faz acreditar que eles são a norma. De repente, Sheila começa a falar em francês, e nos leva a reconhecer a língua estrangeira como um marcador social. Quando se atenta para o seu figurino, explicitamente voltado para o desejo e a libido, o camuflado do seu shorts se revela uma dica: o que fica camuflado no nosso processo de percepção, e não identificamos porque já está domesticado por tantos dispositivos invisíveis?
Josh S. criou a excelente música, além de ser ótimo DJ e performer, tocar guitarra, e usar o beatbox. A sua desimpostação se alinha com a de Sheila e esse modo de ambos atuarem instaura uma situação tal que coloca quem assiste no papel de um voyeur/hacker a acompanhar as ações dos intérpretes. É uma operação de deslocamento sutil, mas poderosa, de enorme alcance crítico.As cenas são curtas, com um quê da estética das tirinhas de quadrinhos, pautadas pela mesma relação de paródia e síntese dessa linguagem. Em uma delas, em um estado de corpo-cadáver, o de Sheila se posta no chão, atravessando e sendo atravessado pelo organizador de fila, como que nos perguntando: que autonomia tem a arte em um mundo assim?
Só mesmo um corpo-a-corpo com os dispositivos, profanando o que eles instituem na nossa vida, permitirá um resgate do que foi capturado e separado de nós. Não à toa, esse Organizador de Carne instiga a dessacralização.
Foto: http://api.ning.com/files/GbzPzc18q9-zzujAf*QCAyrXd3MCm1MEs0paMcpfOTnayjV2ZlSP7TDHKSRSEp*6rVJ8OWkUg6eNPkUVninNfwJODgYjmCi*/odckatz.jpg
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